do Mar Anna Maria Cánopi
A Semana Santa é o coração do ano litúrgico, porque do mistério pascal, nele celebrado solenemente, corre o rio da graça, dom da salvação.
Todo cristão que durante as semanas da Quaresma se comprometeu na luta contra o mal e que, no esforço da sua própria purificação, manteve o olhar simultaneamente voltado para Deus e para si mesmo, é agora convidado pela Liturgia a ter olhos apenas para Cristo . É só a sua Pessoa - as suas palavras, os seus gestos, os seus silêncios - que preenche todo este tempo sagrado e atrai toda a nossa atenção, a ponto de nos identificarmos com Ele, para partilharmos a Sua Paixão num impulso de autêntica empatia, de profunda "compaixão ".
A Virgem Mãe apresenta-se diante de nós como um modelo sublime desta “compaixão”. Na Liturgia ouvimos o seu gemido no mesmo gemido do Filho, mas ainda mais na força do seu silêncio adorador que abraça plenamente, com amor, a vontade divina. Ela é inteiramente um sim ao Pai, um consentimento que expande a sua maternidade de graça numa dimensão incomensurável. Como Ela e com Ela, cada cristão é chamado a seguir Jesus no caminho da Cruz, animado por um forte e generoso desejo de oferecer-se ao Pai, em solidariedade com todos os seus irmãos pelos quais o sangue de Cristo foi derramado.
Isto acontece não só em virtude de um acto de fé e de amor que nos une a Cristo, imergindo-nos na graça do seu mistério liturgicamente renovado, mas também ao trazer para a esfera da sua Paixão cada dor de hoje, tanto a nossa dor pessoal como a nossa. o da sociedade em que vivemos e de toda a comunidade humana. Se vivermos conscientemente a nossa “hora” e a “hora” do mundo atual como uma oferenda, também nós, como afirmou São Paulo, damos “cumprimento ao que, dos sofrimentos de Cristo, falta na [nossa] carne, em favor da seu corpo, que é a Igreja” (Cl 1,24). E fazemos isto na certeza da fé de que do sofrimento e da própria morte surgirá uma alegria muito pura e imperecível, para nós e para muitos dos nossos irmãos.
Do canto de Hosana ao júbilo do Aleluia
A liturgia do Domingo de Ramos apresenta aspectos surpreendentes. Com efeito, Jesus, que tinha decidido partir com os seus discípulos para Jerusalém (cf. Lc 9,51), atinge agora a sua meta e entra na Cidade Santa para ali ser sacrificado como Cordeiro inocente e estabelecer o seu reino universal a partir da Cruz. Quase por inspiração divina, o povo vai ao seu encontro com alegria, aclamando: «Hosana ao Filho de David. Bendito aquele que vem em nome do Senhor! Este anúncio ressoa, convicto e festivo, no rito de comemoração da entrada de Jesus em Jerusalém que precede a Santa Missa.
Enquanto ainda ressoa no ar o eco dos “Hosanas”, a Liturgia da Palavra convida-nos a meditar para apresentar a verdadeira realidade do Rei aclamado com tanto fervor: Ele é o Servo sofredor, que se fez obediente “até à morte e até morte de cruz" (Fl 2, 8): aqui está o seu trono! O solene anúncio do Evangelho – a história da Paixão – conduz-nos por todas as etapas da Via Dolorosa, do Getsêmani ao Calvário. Conservando no coração as últimas palavras de Cristo - palavras ditas por nós - e imergindo nos seus silêncios de "manso cordeiro" - vivido também por nós - podemos entrar no mistério desta Semana: um mistério que, celebrado ao longo de o tempo, transforma-o de kronos em kairós, do tempo cronológico, que passa, ao tempo que se expande na eternidade, precisamente porque contém Cristo que é o mesmo ontem, hoje e sempre.
A liturgia da Segunda-feira Santa leva-nos para fora de Jerusalém e conduz-nos ao ambiente tranquilo de Betânia, à casa dos nossos amigos Marta, Maria e Lázaro, onde Jesus, pela última vez, vai em busca de um revigoramento moral físico e emocional. . O primoroso requinte destes amigos tem a sua expressão mais elevada e pura no gesto de Maria que, quase prevendo o destino que o Mestre está prestes a encontrar, derrama meio quilo de óleo perfumado de nardo verdadeiro sobre os pés de Jesus e os seca com o seu cabelo (cf. Jo 12,2-3). Ela é culpada, mas o que parece a Judas um “desperdício” a ser condenado ainda é pouco para ela. O perfume derramado significa, de facto, o dom de si mesmo como resposta de amor ao amor do seu Senhor que vai morrer por ela e por todos.
Ainda hoje Jesus procura um lugar para descansar... Cada um de nós pode ser a sua Betânia acolhedora.
Com intensa dramaticidade, a liturgia da Terça-Feira Santa faz-nos prever a hora que se aproxima, em que, na solidão absoluta, Jesus levará a cabo o seu sacrifício redentor. Neste dia, de facto, ele apresenta-nos o facto desconcertante de que os apóstolos, e o próprio Pedro, falham na fidelidade. O trecho evangélico termina com palavras repletas de um presságio perturbador que Jesus dirige ao primeiro dos apóstolos: «Darás a tua vida por mim? Em verdade, em verdade vos digo: o galo não cantará até que me tenhas negado três vezes” (Jo 13,38).
Você dará sua vida por mim? É uma pergunta que nos desafia pessoalmente e também faz fluir dos nossos olhos as muitas lágrimas de arrependimento que Pedro derramou após a sua tripla negação.
A escuridão torna-se ainda mais escura na Quarta-Feira Santa, dia em que, no trecho evangélico, ouvimos o anúncio da traição de Jesus. O trecho começa destacando o quanto Judas está amadurecendo em segredo: a sua traição não é causada pelo medo –. como a negação de Pedro – mas premeditada e mantida escondida até “a oportunidade certa”. O próprio Jesus, porém, que conhece os corações, revela a presença de um traidor: “Em verdade vos digo que um de vós me trairá” (Mt 26,21), um dos “seus”, com quem tudo partilhou e confidenciou. Uma dor inexprimível toma conta de todos os convidados. Profundamente perturbados, os discípulos, um por um, começam a perguntar-lhe: Sou eu, Senhor?
Quem entre nós poderia evitar fazer-se esta pergunta dramática?
O Tríduo Santo começa com a Missa vespertina da Quinta-feira Santa - Missa in cena Domini. A cor litúrgica branca, que substitui o roxo, a presença das flores e o canto do Glória exprimem a alegria de um verdadeiro banquete nupcial: com a instituição da Eucaristia, de facto, Cristo une-se para sempre à Igreja, sua esposa, com o vínculo de um amor indestrutível. Estamos reunidos para entrar em comunhão de vida com o Senhor e uns com os outros, comendo aquele único Pão e bebendo aquele único cálice que Cristo, na noite em que foi traído, estabeleceu como nova Aliança entre Deus e os homens.
O ritual do lava-pés - que se realiza depois do anúncio do Evangelho (Jo 13,1-15) - é uma maravilhosa e comovente lição prática de humildade, que nos mostra em primeira mão o que significa "fazer a Páscoa" com Jesus pergunta ao “seu”: «Compreendes o que fiz por ti?». E acrescenta imediatamente: “Dei-vos um exemplo”.
Você entende…? E compreendemos o amor que Jesus nos impulsiona a amar a todos como ele nos amou?
«Depois de dizer estas coisas, Jesus saiu com os seus discípulos para além do riacho de Cedron, onde havia um jardim» (Jo 18,1): ali vive a sua agonia angustiante do Getsêmani, numa noite que parece caminhar para um dia sem amanhecer , imerso na escuridão.
A liturgia da Sexta-feira Santa tem uma tendência séria; hora após hora o choque entre a luz e as trevas torna-se mais evidente e dramático.
O momento culminante deste dia é a Celebração da Paixão com a proclamação – em forma dialógica ou com canto gregoriano solene – da Paixão de Jesus segundo o evangelista João. Idealmente, a comunidade cristã reúne-se no Calvário para fazer seu o sacrifício da Cruz e actualizá-lo, aquele primeiro e único sacrifício redentor que se renova todos os dias, em todo o mundo, na celebração eucarística.
Na Igreja, na Sexta-feira Santa, reina uma atmosfera de intensa gravidade. Tudo é silêncio: silêncio do coração, cheio de atenção e dor diante da realidade da morte de Cristo na cruz, uma morte pela qual todos somos responsáveis por causa dos nossos pecados. Os sinos estão silenciosos, os altares vazios, exceto no momento final da celebração em que se realiza a comunhão eucarística com as hóstias consagradas na Missa vespertina da Quinta-feira Santa.
É um silêncio que continua e preenche todo o Sábado Santo, definido como o “dia do silêncio sagrado”. Algo enorme e terrível aconteceu: a morte violenta do Justo. Assustada, a terra silencia diante do mistério impenetrável. Mas é também um silêncio de espera vigilante, de fé e de esperança. Toda a atenção está de facto dirigida Àquele que predisse a sua ressurreição.
A passagem do Sábado Santo para o Domingo da Ressurreição não acontece através de uma noite, mas através de uma madrugada prolongada e antecipada, através da Vigília, mãe de todas as vigílias. Reunida nas trevas exteriores da Igreja, a assembleia cristã, em misteriosa comunhão com todo o cosmos, coloca-se quase simbolicamente no limiar da história da salvação, a partir de longe, da noite do caos primordial, da distância escura da morte caminhar em direção à luz da Vida, que é Cristo ressuscitado. E não é um simbolismo vazio. A noite angustiante da ausência de Deus, a noite do mal, a noite da solidão que encerra a comunhão ainda paira sobre a humanidade de hoje. Tudo grita necessidade de luz.
Isto é o que expressa a liturgia da luz, que abre a Vigília. Enquanto a vela é colocada solenemente no presbitério, irrompe o canto do Exsultet, celebrando o esplendor de Cristo ressuscitado, libertador do género humano das trevas do pecado e da morte. Imersa na nova luz, a assembleia escuta as grandes etapas da história da salvação, recordando assim as “maravilhas” que Deus realizou a favor do seu povo e de toda a humanidade, até ao ponto culminante: «Cristo ressuscitado do morto, não morre mais... Portanto, vocês também devem considerar-se mortos para o pecado, mas vivos para Deus em Cristo Jesus”. Dos corações dos fiéis irrompe agora o "Aleluia Pascal" como um rio de alegria.